Wonka e Matilda tinham habilidades e inteligência acima da média?

Willy Wonka é amplamente reconhecido na ficção como o melhor chocolateiro e inventor de delícias do mundo. Sua criatividade e talento na confecção de guloseimas são tão extraordinários que parecem não ter limites. Na história, sua fábrica alcança tanto sucesso que leva seus concorrentes à falência. Alguns deles, em vez de se reinventarem, recorrem à espionagem industrial para tentar descobrir os segredos dos produtos Wonka. Para proteger suas receitas exclusivas — um dos meios mais eficazes de proteger a propriedade intelectual, além da patente — Wonka decide fechar sua fábrica e demitir todos os empregados.

Por 15 anos, a fábrica permanece fechada, até reabrir nos eventos narrados na obra-prima “Charlie and the Chocolate Factory” (1964), do escritor galês Roald Dahl. O livro, um clássico infantil, combina uma narrativa moralista com críticas à falta de limites na educação das crianças. Apenas Charlie, o protagonista idealista e filho de trabalhadores desempregados, escapa dessas críticas. Desde sua publicação, o livro vendeu mais de 13 milhões de cópias mundialmente, foi traduzido para 32 idiomas e recebeu duas adaptações cinematográficas.

Em 1972, Dahl lançou uma continuação: “Charlie and the Great Glass Elevator”. Contudo, frustrado com a primeira adaptação para o cinema em 1971, Dahl impediu a filmagem da sequência. Em 2005, Tim Burton trouxe novos detalhes ao universo de Wonka na adaptação estrelada por Johnny Depp, incluindo elementos do segundo livro. Para Dahl, entretanto, o foco deveria estar em Charlie, não em Wonka. Essa abordagem limitada na obra original e nas adaptações permite inferir que Wonka possui habilidades cognitivas excepcionais, semelhantes às de Matilda, outra icônica personagem de Dahl.

Matilda e o reconhecimento de altas habilidades

 

“Matilda” (1988) conta a história de uma criança incrível, autodidata e fascinada pela leitura. Apesar de sua alta capacidade intelectual, Matilda enfrentava negligência por parte dos pais, que a ignoravam e desprezavam suas habilidades. Aos três anos, ela aprendeu a ler sozinha, e, aos quatro, lia fluentemente e demonstrava interesse apaixonado por livros. No entanto, sua condição de alta habilidade passou despercebida pelos pais, que preferiam se dedicar à televisão ou a atividades irrelevantes.

Matilda enfrentava negligência por parte dos pais, que a ignoravam e desprezavam suas habilidades. Aos três anos, ela aprendeu a ler sozinha, e, aos quatro, lia fluentemente e demonstrava interesse apaixonado por livros.
Matilda enfrentava negligência por parte dos pais, que a ignoravam e desprezavam suas habilidades. Aos três anos, ela aprendeu a ler sozinha, e, aos quatro, lia fluentemente e demonstrava interesse apaixonado por livros.

Matilda era uma criança com alta habilidade acadêmica, mas que, embora autodidata, precisava de acompanhamento. Afinal, era uma criança “Matilda” (1988) era uma garota de cinco anos, autodidata e fascinada pela leitura. Ela tinha uma personalidade calma e intelectualmente fabulosa. Entretanto, ela tinha pais que a desprezavam, deixando-a sempre sozinha à própria sorte. “Aos três anos, Matilda já tinha aprendido a ler, sozinha, observando os jornais e revistas que encontrava pela casa. Com quatro anos já conseguia ler rápida e corretamente e começou, naturalmente, a se interessar avidamente por livros”. No texto, os pais da garota deixam de notar sua condição acima da média e até de se responsabilizar pela menina e por suas necessidades de aprendizagem e acompanhamento educacional. Eles passam a viver dirigindo sua atenção para a TV ou para atividades de caráter duvidoso.

Essa situação reflete a importância de identificar sinais de altas habilidades/superdotação (AH/SD) em crianças. Professores capacitados podem reconhecer aspectos como desempenho acima da média em áreas específicas, criatividade, líderança, ou talento especial. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), de 3% a 5% da população global apresenta AH/SD. Isso significa que, em uma escola com mil alunos, cerca de 50 podem ser considerados superdotados. Apesar disso, a identificação e o suporte adequados a esses alunos ainda são insuficientes no Brasil.

Wonka, Matilda e os tipos de inteligência e

altas habilidades

Dessa maneira, percebemos que, na ficção, Matilda e Willy Wonka possuem diversos traços comuns dos alto habilidosos, dos quais podemos enumerar os principais: alto grau de curiosidade, independência, autonomia, criatividade, imaginação, iniciativa, preferência por situações/objetos novos e originalidade para resolver problemas. Entretanto, como mostram conclusões de vários estudos e teorias, quando estas habilidades surgem numa determinada criança, ela precisa ser identificada pelos professores e pais, que devem unir forças para potencializar e suplementar suas habilidades, acompanhando o sujeito rumo ao seu sucesso escolar, profissional e pessoal como é direito dela. Do contrário, habilidades extraordinárias em determinado saber ou prática (como Geografia, Física, representação teatral, escrita criativa ou… um mestre chocolateiro) podem se perder, ou pior: serem aliciadas para o (à primeira vista, interessante, porém malévolo) mundo do crime, pelas organizações criminosas e terroristas — basta observar a complexidade de ação de certos criminosos e terroristas ao redor do mundo (e até no Brasil) para constatar ali um “gênio do crime”, que poderia ter sido um gênio em qualquer-coisa.

O conceito de AH/SD é usado para entender e identificar indivíduos que apresentam notável desempenho e elevada potencialidade em aspectos isolados ou combinados das seguintes habilidades: capacidade intelectual geral, aptidão acadêmica específica, pensamento criador ou produtivo, capacidade de liderança, talento especial para as artes e capacidade psicomotora. Logo, o indivíduo superdotado é aquele que expressa alto nível de inteligência e indica desenvolvimento acelerado das funções cognitivas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de três a cinco por cento de qualquer população nacional possui altas habilidades. Na prática, significa dizer que, dada uma escola de 100 alunos, cinco teriam AH/SD, numa empresa de mil funcionários, 50 teriam AH/SD. Isto é muita gente! E, tal montante, tem gerado preocupação em pesquisadores sobre o que é e como se dá a inteligência, produzindo teorias que foram enriquecidas nos anos 1980 e 1990 com aprimoramentos epistemológicos nas áreas de psicologia, neurociência, entre outras.

A padronização do ensino é uma prática que limita o desenvolvimento de alunos com altas habilidades. Enquanto escolas tentam oferecer uma educação “igualitária”, ignoram as necessidades específicas de alunos como Wonka e Matilda. Um ensino de qualidade exige currículos adaptados, metodologias flexíveis e processos de avaliação que respeitem as diferenças individuais.

Teorias sobre inteligência e inclusão educacional

A concepção de inteligência, com o passar do tempo, foi se ampliando trazendo implicações e desafios importantes para o modelo educacional, para os agentes da educação (professores, diretores, pais e tomadores de decisão política) e para a prática pedagógica. Hoje em dia, os modelos americanos do Círculo dos Três Anéis, de Joseph Renzulli (1980 em diante), a Teoria Triádica do Desenvolvimento Humano, de Robert Sternberg (1985 em diante), e a Teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner (1980 em diante), são os mais conhecidos e utilizados nas escolas que trabalham com inclusão no Brasil. 

Gardner, por exemplo, é um pesquisador interessado na manifestação das várias inteligências de um indivíduo, buscando enfatizar a capacidade de resolver problemas e de elaborar produtos. Para ele, o ser humano é dotado de inteligências múltiplas que incluem as dimensões linguística, lógico-matemática, espacial, musical, cinestésico-corporal, naturalista, interpessoal, e intrapessoal. Já o Modelo WICS (Wisdom, Intelligence, and Creativity Synthesized) da Teoria Triádica do Desenvolvimento Humano, de Sternberg, veio para suprimir os testes de QI, que não davam mais conta de explicar, delimitar ou quantificar algo fluido como a inteligência. Para ele, a inteligência (chamada de Inteligência exitosa) era uma habilidade intencional para adaptar-se a diferentes ambientes, configurá-los e selecioná-los. Não obstante, os indivíduos com esta inteligência conhecem suas próprias forças e compensam suas fraquezas.

Por fim, segundo a teoria do Círculo dos Três Anéis, do psicólogo Joseph Renzulli, um dos maiores especialistas no mundo nesta área, defende um modelo segundo o qual os indivíduos com altas habilidades/superdotação são os que apresentam habilidades acima da média em relação aos seus pares, em uma ou mais áreas de inteligência; apresentam elevado nível de envolvimento com a tarefa, ou seja, são bastante motivados e comprometidos e, finalmente, possuem criatividade elevada. Para Renzulli, a AH/SD é relativa ao tempo, às pessoas e às circunstâncias, isto é, os comportamentos superdotados aparecem em determinadas pessoas, em determinados momentos e em determinadas circunstâncias.

A partir destas teorias que foram surgindo no final do século XX e início do século XXI, tomou-se consciência da importância de se tirar estes indivíduos da invisibilidade institucional (as políticas públicas e ações sociais) em que estes indivíduos se encontravam.

Necessidade de escolas inclusivas

para trabalhar com altas habilidades

A partir destas considerações, é possível inferir que os personagens Willy Wonka e Matilda seriam, na ficção, exemplos de indivíduos que possuem, em algum grau, as Altas Habilidades para alguma área específica ou geral. O primeiro tipo de AH/SD, bastante valorizado nas escolas, é o tipo acadêmico, encontrado em Matilda e em inúmeras crianças e adultos e voltado para a busca de conhecimento. Não é raro, por exemplo, encontrar escolas e cursos pré-vestibulares oferecendo bolsas de estudo a estes indivíduos (que podem possuir, ou não, o laudo de indicação de AH/SD) com a contrapartida de estampar os rostos pintados destes garotos e garotas ostentando dez, 15 sucessos em vestibulares de Medicina.  O outro, bastante problemático para muitos professores e pais, é o tipo criativo/produtivo.

O Sr. Wonka demonstra claramente este ramo das eficiências em toda a sua produção e criação. Problemático porque este talento muitas vezes vem combinado (ou confundido) com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade — o TDAH — por serem crianças desinteressadas na forma padrão de aprendizagem, porém interessadíssimas em outros assuntos ou práticas de conhecimento. Observamos que, diferente de um sujeito como Matilda (garota com AH/SD para a área acadêmica e que, por isso, tinha paixão pela leitura, pela escola, e era adorada pela Srta. Mel, sua professora), aquele sujeito do tipo criativo/produtivo tem grandes dificuldades com o ambiente escolar e com a forma de organização e ensino do conhecimento do modo padronizado, que não leva em conta suas peculiaridades como um jovem com AH/SD. Logo, o grande erro das escolas (públicas e privadas) é aplicar uma padronização do ensino supondo que haverá, por tal prática, a esperada aprendizagem igualada, padronizada, eliminadora de desigualdades; ou seja, que produzirá, como efeito, o tão sonhado “ensino de qualidade”, que muitos não sabem o que significa, nem como traduzir para a prática.

Por isso, atualmente, as pessoas com altas habilidades são indivíduos com necessidades educacionais especiais, com direitos garantidos pela legislações brasileira e internacional. Em outras palavras, altas habilidades, por lei, é considerada parte da chamada educação inclusiva, pois é uma espécie de necessidade especial, como a deficiência também é. Porém, as iniciativas para o seu apoio ainda são insuficientes na sociedade brasileira. Acrescenta-se também que o Alto Habilidoso necessita de estímulos educacionais diferenciados, já que é imprescindível o aprofundamento nas matérias de interesse, nas quais possui alta habilidade, e o equilíbrio nas demais, nas quais provavelmente apresentará deficiência, já que praticamente se interessará apenas pela área da qual gosta. Afinal, crianças com AH/SD não constituem um grupo homogêneo, variando tanto em habilidades cognitivas quanto em nível de desempenho e personalidade.

É preciso lutar por uma escola inclusiva que busque ter um projeto pedagógico que responda às necessidades específicas de cada aluno ou grupos de alunos. Ensino de qualidade significa propor atendimento suplementar para o aprofundamento e/ou enriquecimento curricular ao aluno com altas habilidades, flexibilizando e adaptando os currículos, as metodologias de ensino, os recursos didáticos e os processos de avaliação, tornando-os adequados ao aluno com altas habilidades, de acordo com o projeto pedagógico da escola. É direito legal deste aluno, por seu status de inclusão, ter apoio pedagógico especializado tanto na classe comum, quanto na sala de recursos. Os nossos tomadores de decisão política precisam dar todas as condições para que, cada vez mais escolas da rede regular de ensino em Goiás, através do Núcleo de Atividades de Altas Habilidades Super Dotação (NAAH/S), possam prever e prover serviços de apoio pedagógico especializado em salas de recursos para estes alunos.

Hoje, nós sabemos que nem toda criança tem a sorte de Matilda, de ser adotada por uma professora amorosa e apta para ajudá-la a cumprir seu maior sonho: ter livros em casa para ler e ser acompanhada (e respeitada) no seu próprio progresso escolar. Eu sempre me perguntei o que teria acontecido à garota se tivesse continuado naquele ambiente familiar e escolar nocivo, sem ter feito nada para mudar a própria situação. Por isso, é essencial que pais e professores de crianças com AH/SD (seja ela do tipo Willy Wonka ou do tipo Matilda) deem às crianças a chance de se desenvolver em seu próprio ritmo, aproveitando ao máximo suas potencialidades e competências. Ou seja, sem exigir além da conta, sem transformá-la num showzinho de aberrações de circo do tipo “quanto é a raiz de 49?”; sem forçar as habilidades da criança para algo que ela não tem inclinação ou sonho; sem esquecer que, apesar do telencéfalo barbaramente desenvolvido para a idade, ela ainda continua sendo uma criança que precisa se sentir segura, protegida e amada; que ela ainda erra; que é inteligente para algumas coisas e totalmente tola, sensível e ingênua para outras (e isso não é defeito). Por outro lado, é preciso observar que há conteúdos curriculares que a criança já domina e que, se ela não for estimulada a construir novos conhecimentos — aliados à necessidade de observância às regras de convivência social e ser respeitada por seus parceiros da mesma faixa etária em sua diferença —, muito pouco servirá para o sucesso escolar e na vida, ter uma capacidade mental lendária, digna de ser citada na literatura universal. Pelo contrário, isto só produzirá aborrecimento com a escola e os colegas, desmotivação para alcançar o sucesso escolar e a liberdade incontida para desenvolver comportamentos indesejáveis e frustrantes ao longo da vida.

(Este texto foi publicado primeiro no Jornal Opção, em Goiânia-GO, no dia 07 de fevereiro de 2017).

Johnatan Willow Dias de Andrade , que também possui AH/SD é professor formado em Letras pela UFG e escritor ficcionista

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