De Letras a Linhas de Código: A Linguagem Como Base do Mundo

Imagem de um jovem nerd com traços de escritor, combinando inteligência e curiosidade, imerso no mundo da Tecnologia da Informação.

A transição de carreira de um profissional da área de Letras e Linguística para a Tecnologia da Informação, que envolve cálculo, matemática, programação e lógica, pode parecer uma guinada brusca para alguns, mas sob uma análise ontológica, é uma extensão natural do mesmo princípio. A relação entre linguagem, matemática e programação à primeira vista pode parecer segmentada, visto que cada uma dessas disciplinas se manifesta de maneira distinta. A Linguagem natural (como o português, inglês e francês, que estão entre minhas habilidades linguísticas) serve para comunicação humana. Já a Matemática é vista como um sistema formal abstrato de números, funções e estruturas. Por fim, as linguagens de Programação (como o Python ou Javascript – duas linguagens que também são meu objeto de estudo) são um conjunto de regras e códigos usados para instruir máquinas. Pelo senso comum, diríamos que são áreas separadas, cada uma com suas próprias regras e finalidades. No entanto, com um olhar mais voltado para a essência das coisas, nos é revelado que todas elas compartilham uma estrutura essencial: a capacidade de representar e organizar a realidade através de símbolos (como o código binário, o alfabeto e o código decimal) e regras (de sintaxe, de semântica, de lógica e discursiva). Logo, não são tão isoladas ou distantes como querem nos fazer crer alguns.

A Linguagem como Estrutura Fundamental

A linguagem natural, como o português e várias outras línguas, é um sistema de comunicação que permite a expressão de ideias e organização do conhecimento. Já a matemática é considerada uma linguagem formal, caracterizada por suas regras rígidas e precisão lógica. A programação, por sua vez, é uma extensão da matemática, projetada para estruturar processos computacionais.
Apesar das diferenças superficiais, todas compartilham elementos comuns: um conjunto de símbolos (palavras, números, comandos), regras para combinação desses símbolos (gramática, sintaxe, lógica) e significados atribuídos a essas combinações (semântica, interpretação). Isso indica que a linguagem, em qualquer uma de suas formas, é um sistema de representação da realidade.

A Visão Filosófica

A metafísica da linguagem tem sido um tema recorrente na filosofia. Platão via a matemática como uma expressão do mundo das ideias, enquanto a linguagem natural seria imperfeita e imprecisa. Aristóteles, por outro lado, argumentava que a lógica — a base da matemática e da programação — era uma estrutura essencial do pensamento humano.

Heidegger afirmava que a linguagem é a “casa do ser”, sugerindo que é através dela que entendemos e damos sentido à realidade. Nesse contexto, a matemática e a programação seriam apenas formas especializadas desse mesmo princípio fundamental. Wittgenstein reforçou essa ideia ao argumentar que toda linguagem é um “jogo de linguagem”, com regras próprias que determinam como interpretamos o mundo. Em primeira das duas fases filosóficas principais, o Tractatus Logico-Philosophicus (fase inicial), Wittgenstein acreditava que a linguagem representa o mundo de forma lógica: a estrutura da linguagem reflete a estrutura da realidade. Em Investigações Filosóficas (fase tardia), ele rejeita essa visão rígida e argumenta que a linguagem é um conjunto de “jogos de linguagem”, cada um com sua própria gramática e regras. Ou seja, para o filósofo, as linguagens, tal como a matemática, não são uma verdade absoluta da realidade, mas um sistema de regras que nós criamos para resolver problemas.

Linguagem, Matemática e Programação: Expressões do Mesmo Princípio

A matemática pode ser vista como uma forma de linguagem que busca representação objetiva e universal. A programação, por sua vez, é uma evolução desse sistema, transformando conceitos matemáticos em estruturas computacionais que manipulam informações e executam tarefas dentro de uma máquina. Em Python, por exemplo, escrever print(“Olá, Mundo!”) é um jogo de linguagem onde print significa “exibir algo na tela”. Em outra linguagem, como JavaScript, faríamos a mesma coisa de um jeito completamente diferente.
Logo, a programação funciona exatamente como um jogo de linguagem:

  • Tem sintaxe e semântica próprias. Depende do contexto (cada linguagem de programação tem seu propósito).
  • Segue regras formais, como a matemática, mas também permite interpretações (como linguagem natural).

Os idiomas também são jogos de linguagem porque:

  • Cada um tem gramática própria (assim como matemática e programação).
  • As palavras ganham sentido dentro de um contexto. Diferentes idiomas podem expressar o mesmo conceito de formas diferentes.

Ou seja, falar português, programar em Python e resolver equações matemáticas são apenas diferentes jogos de linguagem que seguimos para comunicar ideias.

jovem desenvolvedor com estante de livros de literatura como pano de fundo.

O desenvolvimento das linguagens de programação segue um padrão semelhante à evolução das línguas naturais, pois ambas se adaptam às necessidades de expressão e comunicação. Assim como a língua falada tem suas regras sintáticas e semânticas, linguagens de programação possuem sintaxe e regras lógicas próprias. Em essência, tudo é linguagem!

  1. Linguagem Natural – Um sistema simbólico que permite expressar ideias e organizar conhecimento.
  2. Matemática – Uma linguagem formal, com regras mais rígidas e estruturadas, mas ainda assim um meio de expressão.
  3. Programação – Uma linguagem projetada para estruturar processos lógicos e computacionais.

Neste sentido, seria algo totalmente estranho e uma profunda quebra de paradigma o interesse de um linguista em novas formas de representação e organização do pensamento pela linguagem? De forma alguma! Pelo contrário, faz todo sentido que um linguista e beletrista (alguém que se dedica ao estudo, produção ou apreciação da literatura e das belas letras) tenha novos e inexplorados interesses por novas formas de representação e organização do pensamento pela linguagem. Afinal, a essência do estudo da linguagem não está apenas nas línguas naturais, mas em qualquer sistema simbólico que permita estruturar e transmitir conhecimento. Um profissional de idiomas é aquele que busca se envolver e entender a estrutura, semântica, pragmática e regras de comunicação daquele idioma que estuda. E é exatamente isso, o que busca um desenvolvedor diante da sua linguagem de programação preferida: entender a estrutura, semântica, pragmática e regras de comunicação de um código ou programação.

Sistemas de Informação requerem organização do pensamento e aplicação de regras formais para solucionar problemas. Isso se assemelha à estruturação da linguagem natural e à sua análise sintática. O raciocínio lógico necessário para programar não é distante do que se faz ao aprender e ensinar gramática e semântica de uma língua.

Se eu puder resumir e explicar este paradigma num único parágrafo seria: a programação e a matemática, assim como a linguística, operam sobre princípios fundamentais de estruturação e interpretação de signos; o que muda é o suporte e a aplicação: enquanto a linguística tradicional analisa discursos, gramáticas e semântica, a programação e a matemática estruturam a lógica e os algoritmos. No fundo, todas essas áreas são variações do mesmo impulso humano de representar a realidade e interagir com o mundo por meio da linguagem. Dessa forma, a nossa capacidade de entender o mundo através dessas estruturas não é mera coincidência, mas sim um reflexo da natureza intrínseca da própria existência.

O Universo Como Linguagem/Código?

O que você e eu percebemos como linguagem, matemática e programação são manifestações diferentes de um mesmo princípio essencial: a capacidade humana (ou da própria realidade) de se estruturar através de signos e regras. São maneiras diferentes de codificar e estruturar o pensamento. Por isso, a interconexão entre linguagem, matemática e programação nos leva a questões ainda mais profundas:

  • A matemática é descoberta ou inventada?
  • A linguagem molda a realidade ou apenas a descreve?
  • Programação é uma forma de pensamento ou apenas uma ferramenta?

E é daí que vem as mais interessantes ideias como a hipótese do universo como simulação computacional (A ideia de Nick Bostrom, de que vivemos em uma simulação criada por uma civilização mais avançada sugere que a realidade é codificada como um programa de computador, regido por leis matemáticas precisas. Nesse cenário, tudo o que experimentamos seria resultado de um conjunto de algoritmos sofisticados, funcionando como uma linguagem de programação cósmica.); a teoria da informação na física quântica (Algumas interpretações da física sugerem que a realidade pode ser reduzida a bits de informação, o que implicaria que a base fundamental do universo não são partículas físicas, mas dados estruturados.); a matemática como a linguagem fundamental da realidade (Max Tegmark propõe que o universo não apenas é descrito pela matemática, mas é matemática. Isso significa que tudo o que existe pode ser entendido como estruturas matemáticas puras, e nossa percepção da realidade nada mais seria do que uma interpretação dessas equações); ou mesmo a antiga ideia de Criação pela Palavra de Deus (Fiat Lux) (A visão religiosa de que Deus criou o universo por meio da palavra remete à ideia de que a realidade surgiu através de um ato linguístico primordial – “Fiat Lux” (“Faça-se a luz”) –, e sugere que a linguagem divina é o princípio estruturador de todo o design inteligente do universo.

Assim, mudar de profissão não é uma quebra de paradigma, mas uma ampliação das capacidades adquiridas no estudo da linguagem, aplicando-as em um novo contexto. E algo me diz que vou gostar bastante de me enveredar por novas fronteiras em busca deste novo desafio epistemológico.

 

 

 

1 comentário em “De Letras a Linhas de Código: A Linguagem Como Base do Mundo”

  1. Daniela Felipe Silva

    Olá professor Willow, a quem tenho a hora de chamar de meu amigo. Gostei muito de ler este texto. Como alguém que já estudou linguagem de programação, concordo integralmente quando diz que a linguística, a matemática e a programação são formas diferentes da mesma essência, que é a própria linguagem em si e o anseio humano de representar a realidade e se comunicar. Desejo muito sucesso nessa ampliação que está disposto a fazer no estudo da linguagem. Até mais.

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